segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Como para si mesmo, estrangeiro...

O homem que apenas vive, sem muito contestar. Como se estar vivo fosse bastante; afinal, a vida traz em si, aleatória e involuntariamente, todos os absurdos com os quais já temos de lidar. Enredado numa trama banal: numa relação amorosa que o satisfaz, mas sem grandes arroubos; num emprego qualquer que o mantém, mas não o estimula (porque ele mesmo parece nem crer em maiores estímulos de outra ordem); com amigos que o acaso lhe põe no caminho, em relações de superfície, o protagonista é um argelino comum. Tem a mãe em um asilo, a quem nem visita mais. Vai vê-la morta, mas de que adianta olhar para o cadáver? (Eu mesma não olho os "meus" mortos no esquife, prefiro lembrar-lhes o semblante vivo). O pecado moral de Mersault é não derramar lágrimas no enterro de sua genitora. E, quando as casualidades lhe põem o sol ofuscando a vista, combinado à fatalidade de estar com uma arma em punho, em frente a um árabe com quem já havia protagonizado uma disputa (na qual fora apenas acompanhante do amigo, real pivô da desavença), o dedo aciona o gatilho, como ato condicionado a todo o cenário e instrumentos em ação.
Resultado: o julgamento falso moralista de sua suposta desumanidade e a condenação à morte.
Todo o tempo, desconhecendo as versões de si apresentadas, resigna-se (mas com laivos de revolta passiva) à estranheza de ser, humano.

(Nota à margem de O Estrangeiro, Albert Camus)
(Renata Pimentel)

2 comentários:

Ana disse...

Julgamento de uma "suposta desumanidade" acho isso um entendimento feliz e significativo pra resumir a trama.

Glenda Carla disse...

Exatamente isso,Renata: supostamente desumano. E como provar que algo não existe pela simples fato de ela não ser explícita? Vc resumiu bem!